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Os caminhos da Cracolândia, a maior feira de drogas do Brasil

Há 25 anos, São Paulo combate sem sucesso seu maior foco urbano de consumo de crack. Uma megaoperação policial recuperou em 2022 o território e dispersou os usuários pelo centro. O uso da força reavivou o debate entre o tratamento obrigatório e a redução de danos

Cracolândia dias antes da grande ação policial de 2017, no cruzamento das ruas Helvetia e Alameda Dino Bueno. Solar onde ainda não existia edifício habitacional.
Cracolândia dias antes da grande ação policial de 2017, no cruzamento das ruas Helvetia e Alameda Dino Bueno. Solar onde ainda não existia edifício habitacional.Paula López

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São nove da noite de um sábado e chove em São Paulo. As dezenas de milhares de pessoas que vivem e dormem na rua aproveitam as pontes e túneis para se proteger. Embora o verão se aproxime, este novembro é especialmente frio. Sob a chuva, o Minhocão serpenteia pelo centro como uma grande lombriga: é o Elevado Presidente João Goulart, uma via expressa sobre pilares de concreto, construída às pressas para ligar pontos, sem olhar para o que acontece debaixo. Hoje, na altura da rua Helvetia, seu piso é o teto para umas trezentas pessoas que se acotovelam compartilhando o espaço entre cobertores cinzas, quase sem deixar vazios. A maioria delas está acordada e sentada. Algumas deitadas, outras paradas em pé ou dançando. Várias conversam entre si. Outras estão sozinhas. Há poucas mulheres e nenhuma criança.

Os que seguram um tubinho comprido e fino numa mão o levam à boca e aspiram, entre os cliques do isqueiro na outra. A “cocaína dos pobres” faz um barulho — crack — ao ser aquecida. São pedras esbranquiçadas que resultam de dissolver cocaína em pó e bicarbonato de sódio em água, ferver e deixar secar. O crack é cocaína tragada; ao levá-la diretamente aos pulmões, o efeito é imediato e intenso. “Chamamos de ‘brisa’ esse momento em que a substância sobe e você sente que é uma superheroína capaz de conquistar qualquer coisa. Nem percebe que está num lugar imundo”, conta uma antiga usuária. A sensação é curta, dura dez minutos, e cada dose custa cinco reais. Mas nem todos que estão na aglomeração consomem crack, ou nem sempre: alguns simplesmente estão por ali, e muitos recorrem à cachaça barata em garrafas de plástico para enfrentar o frio da noite.

Duas patrulhas com agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM), apoiados eventualmente pela Polícia Militar, vigiam esse grupo 24 horas por dia. É um dos pedaços da desmembrada Cracolândia, a maior feira livre de drogas de São Paulo, que se instalou definitivamente no centro há quase 25 anos.

De meca do cinema a terra do crack

Antes da Cracolândia, os quarteirões ao redor da estação ferroviária da Luz eram conhecidos como Boca do Lixo. Um nome depreciativo que se popularizou nas seções policiais da imprensa dos anos cinquenta pela presença de prostituição barata e delinquência. Mas a zona de passagem de tantos viajantes não era conhecida apenas por isso: a partir dos anos vinte, a boa localização do primeiro bairro planejado de São Paulo atraiu empresas cinematográficas como Paramount, Fox e Columbia, que se estabeleceram ali. Em 1961, com a inauguração do terminal de ônibus da Luz, que conectava a metrópole com o resto do país, a Boca do Lixo se transformou no maior polo de cinema do Brasil e acabou dando nome a um movimento cinematográfico.

Parte do trabalho do grupo de voluntários é poder oferecer um prato de comida aos usuários.
Parte do trabalho do grupo de voluntários é poder oferecer um prato de comida aos usuários. Matias Delacroix (AP)

Mas esse esplendor de filme durou pouco. Nos anos setenta as empresas e a classe média se mudaram para áreas mais novas, como a avenida Paulista e o bairro de Higienópolis. O embate decisivo, no entanto, só chegou na década de oitenta, quando o terminal rodoviário da Luz foi desativado e os hotéis, pensões e restaurantes que tinham brotado nessa efervescência foram perdendo clientela e baixando os preços. A região não se esvaziou, mas deixou de ser cuidada. Nessas ruas com nomes tão pomposos como “do Triunfo” restaram aqueles que não triunfaram para a sociedade, em uma situação cada vez mais precária.

Em 1989, uma nova droga circulava por São Paulo. Em dezembro de 1990 a polícia apreendeu crack pela primeira vez, na zona leste da cidade. Seu uso era disperso, e só no final dos anos noventa se formou o chamado fluxo, a aglomeração na rua para consumir. “Fizemos o acompanhamento psiquiátrico do primeiro grupo de usuários de crack, 138 pessoas. Mais da metade morreu, mas a maioria por violência.” Apesar do ambiente insalubre e tóxico, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira observa que o maior risco para quem consome no espaço público são as várias formas de violência a que estão expostos. Laranjeira é especialista em dependência química há 40 anos e coordena um levantamento de cenas de uso de droga em capitais do Brasil (conhecido pela sigla Lecuca), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo os dados do último levantamento, em junho de 2021, antes da grande operação policial de dispersão de maio de 2022, 1.343 pessoas frequentavam a Cracolândia a cada dia. Um número relativamente pequeno comparado com os 22 milhões que habitam a região metropolitana mais populosa da América.

A Cracolândia se instalou na zona degradada junto à estação da Luz quando o cinema da Boca do Lixo já era só uma lembrança. “O crack era barato e viciante, e chegou a um bairro onde muita gente tinha perdido suas casas e consumia drogas. Disseminou-se rapidamente nesse caldeirão, temperado com o plano urbanístico de abandono do centro.” Assim descreve Roberto Monteiro, o delegado da Polícia Civil responsável desde 2019 pela região central de São Paulo e à frente das operações policiais da Cracolândia. É um homem de 60 anos, policial —como seu pai— desde os 20. Seu amplo gabinete numa delegacia a poucos quarteirões do fluxo está decorado com fotos em preto e branco de outro centro, o dos grandes edifícios representativos de arquiteturas imponentes.

Cartaz na praça Marechal Deodoro, no centro de São Paulo.
Cartaz na praça Marechal Deodoro, no centro de São Paulo. Paula López

Fala no passado quando se refere a um dos maiores desafios que enfrenta no comando da segurança pública na grande zona central, onde vivem mais de 400.000 pessoas e por onde dois milhões passam diariamente: acabar com a Cracolândia. “Nós nos apoiamos em três pilares: repressão ao tráfico de drogas, assistência social e de saúde pública, e reurbanização”. A operação policial que ele dirige se chama Caronte, como o barqueiro da mitologia grega que leva as almas dos recém-falecidos para serem julgadas e terem decidido o seu lugar de descanso.

A Operação Caronte começou em junho de 2021. “Começamos com um trabalho de inteligência e investigação. Infiltramos policiais entre os narcotraficantes, dependentes e travessias, que são os que transportam carroças com ferro-velho, mas também com droga e pessoas retalhadas após serem assassinadas no ‘tribunal do crime’, aqui”, diz, apontando numa foto o edifício mais emblemático de um cruzamento da Cracolândia.

Encerradas as primeiras etapas das investigações, na madrugada de 11 de maio a polícia pôs mãos à obra e começou a grande operação para dispersar o fluxo, instalado fazia um mês na praça Princesa Isabel, a 500 metros da sua localização tradicional. “Detivemos vários líderes do PCC.” São as siglas do Primeiro Comando da Capital, a principal organização criminal do Brasil, que domina o tráfico de drogas na Cracolândia e, até recentemente, a tinha como seu território. Quatro quarteirões onde se vendia crack em barracas, em plena luz do dia, como se vende fruta em qualquer feira livre de bairro.

Desde o início da megaoperação, a polícia prendeu 166 pessoas, e os usuários que continuam na rua não voltaram a se concentrar em um só lugar. A dispersão é a estratégia. “Os pequenos grupos são mais permeáveis à repressão ao narcotráfico e às ações de saúde pública.” Segundo a polícia, depois de suas intervenções, a quantidade de usuários na rua diminuiu drasticamente.

Personas que viven en la calle en el centro de Sao Paulo. Se calcula que ha aumentado un 30% durante la pandemia.
Personas que viven en la calle en el centro de Sao Paulo. Se calcula que ha aumentado un 30% durante la pandemia. Paula López

Não opinam o mesmo alguns pesquisadores do Labcidade, o laboratório de espaço público e direito à cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que questionam os dados policiais. “Eles não têm metodologia de pesquisa e agora é impossível quantificar os usuários, porque estão circulando constantemente”, afirma Aluízio Marinho, responsável por um mapa-denúncia que ilustra onde foram parar as pessoas que a polícia dispersou. “Eles só contam o fluxo da rua Helvetia na altura do Minhocão, não os outros lugares onde se instalou. Nós contamos 16 mini-Cracolândias.”

Atualmente a polícia foca em responsabilizar criminalmente o uso de drogas. Isto é justamente o mais polêmico, como explica a advogada Cecilia Galicio. “O principal problema é tratar uma situação de saúde pública com forças de segurança. A polícia deve se dedicar à inteligência e combate ao narcotráfico, não a intervir junto aos usuários.” Cecilia é vice-presidenta do Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool (Comuda) do município de São Paulo. “No fluxo há uma porcentagem muita baixa de narcotraficantes, mas a repressão é para todos”, diz ela, recordando que a ONU tem diretrizes específicas de direitos humanos para a política de drogas. E, embora as convenções internacionais que estabeleceram sua proibição sejam implacáveis, a guerra às drogas não funciona. “A sociedade internacional percebeu que devemos atuar com saúde pública e não com violência e repressão policial”, afirma a pesquisadora.

Além de suas funções oficiais, Cecilia atua como advogada voluntária para fiscalizar as atuações na Cracolândia. “Na semana passada a polícia deteve 19 pessoas e só apreendeu três pedras de crack e cinco doses de maconha. Seriam no máximo sete casos de uso de droga. Foram postas em liberdade com o compromisso de irem ao posto de saúde. Uma van as esperava na porta da delegacia.” Alguns grupos de ativistas denunciam que na prática a polícia está retendo usuários por portar um cachimbo —usado para fumar crack— e obrigando-os a escolher entre tratamento ou prisão. Uma medida dessas, observa Cecilia, é abuso de autoridade. “A lei de entorpecentes do Brasil não prevê pena privativa de liberdade por consumo”, observa. Como membro do conselho municipal para o tema, ela reivindica um conjunto de políticas públicas que atendam às peculiaridades dos usuários, inclusive dos que continuam na rua. “Vamos propor um espaço de consumo seguro de substâncias.” O conflito legal poderia ser evitado com um foco na saúde pública e implementando uma política de exceção, diz Cecilia. Embora consciente de que dificilmente a conservadora Câmara Municipal de São Paulo aprovará o projeto, ela confia nas declarações do responsável municipal pelas ações na Cracolândia, que se propôs a acabar com o uso de drogas em espaço público.

Sair da rua

O edifício Matarazzo é a sede da prefeitura de São Paulo. Olhando das amplas avenidas que o cercam, chama a atenção o espetacular jardim que aparece em sua cobertura. Um pouco mais abaixo, no 11.o andar, fica o gabinete de Alexis Vargas (PSDB), secretário-executivo de Projetos Estratégicos da cidade de São Paulo e responsável pelo programa Redenção, que visa a acabar com a Cracolândia. Sobre a cidade e diante de um mapa que vai do chão ao teto, o advogado de 45 anos explica por que, depois de tantas tentativas, ele acredita que esta será a definitiva. “Pela primeira vez temos uma estratégia integrada entre Estado e município, e estão coordenadas saúde, assistência social, segurança e limpeza”. Diz que o programa foi concebido estudando outros casos do mundo, nenhum tão desafiador como o de São Paulo. “Um centro abandonado em uma cidade enorme e muito desigual; o crack não pode ser tratado com metadona, como a heroína; e temos o PCC, uma multinacional fortíssima do crime organizado.” Segundo dados oficiais, no final de 2016 havia 4.000 pessoas na grande feira de drogas a céu aberto, que faturava 200 milhões de reais por ano.

Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégicos de São Paulo e responsável pelo programa Redenção, que busca acabar com a Cracolândia, numa das antigas pensões.
Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégicos de São Paulo e responsável pelo programa Redenção, que busca acabar com a Cracolândia, numa das antigas pensões. Paula López

O Redenção começou de maneira explosiva em maio de 2017 com uma megaoperação policial muito violenta e criticada. Dias depois de 900 agentes desmantelarem a Cracolândia à força e de o então prefeito João Doria (PSDB) assegurar que tinha acabado com ela, o fluxo voltou para o mesmo lugar. Quando Vargas assumiu o cargo, em 2019, promoveu uma guinada nas estratégias do programa para acabar com a grande concentração de consumidores de drogas perto da estação da Luz. “Desta vez está funcionando. Que o poder público tenha retomado o controle do território é uma mudança radical.” O secretário defende a dispersão, alegando que com ela “é mais fácil abordar os usuários e oferecer tratamento”. Também se gaba dos bons resultados do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT). Como nos programas de redução de danos, o objetivo não é que os usuários deixem totalmente de consumir, mas sim que recuperem o controle da sua vida. Longe do centro da cidade, quatro unidades acolhem os dependentes por um máximo de dois anos. Acaba de ser inaugurado o da Penha, com 50 vagas. Os outros três recebiam juntos 119 pessoas em outubro passado.

A 15 quilômetros da Cracolândia se encontra o SIAT Hermelino Matarazzo. “Depois que saem daqui, 90% não voltam a viver na rua”, diz Maria Margarete Alves dos Santos, ao lado de Raquel do Nascimento Machado. As duas mulheres esbanjam energia e otimismo. São assistentes sociais e gerentes do centro de acolhida temporária com 60 vagas. “É um trabalho muito desafiador, mas extremamente gratificante.” Raquel se emociona ao recordar o que lhe disse recentemente um senhor ao acabar o tratamento: “Obrigado por não me abandonar, porque eu sim tinha me abandonado”. As assistentes sociais concordam que o trabalho mais importante é o primeiro contato, quando abordam os usuários na rua. “Eles já não acreditam em valores, na sociedade, na família nem em tratamentos. Recuperar isso é um processo longo, e o único que funciona é o vínculo. A partir daí se pode começar a trabalhar”, diz Margaret. Argumentam que é preciso oferecer a melhor qualidade possível aos moradores de rua, para demonstrar a eles que têm direitos.

As ruas onde estava a feira livre do crack há mais de 20 anos, agora sem venda de droga.
As ruas onde estava a feira livre do crack há mais de 20 anos, agora sem venda de droga. Paula López

Atualmente, 32 pessoas vivem nos quartos com banheiro privativo do centro de acolhida que antes foi um hotel. Três homens assistem televisão na sala com poltronas. Sergio fala com sua família pelo Facebook. “Estou aqui há um mês, larguei o álcool e a cocaína, agora só fumo maconha”, diz. Edvan chega da rua radiante porque acaba de comprar uma casa. “Pequena, mas é minha”, conta. E sorri orgulhoso. Completou 37 anos, dois aqui, e não quer voltar a dormir ao relento nem a consumir na Cracolândia, onde morou durante cinco.

“A rua é cruel, sobretudo para as mulheres.” Priscila recebeu hoje seu primeiro salário. Trabalha como auxiliar de limpeza, mas aos 31 anos tem muita vida pela frente. Gosta de ler e planeja estudar psicologia. “Quero me formar para ajudar a quem passa pelo que eu passei.” Ela está recuperando o contato com seus três filhos, agora tutelados por familiares, e isso a ajuda a lutar contra a tentação de voltar a consumir crack, embora saiba que isso só depende dela. “Minha irmã gêmea ainda mora e se droga debaixo da ponte, mas ninguém pode ajudar se ela não quiser. Nem nas melhores clínicas. Não funciona.” Sair do vício do crack foi uma luta monumental e teve várias recaídas, conta ela, mas faz dois anos que Priscila não usa. “Decidi parar quando estava grávida da minha terceira filha, a Jasmin, que está com um ano e meio.”

Até 2020 vivia como sua irmã, em uma “mini-Cracolândia” sob uma ponte perto da favela Jardim Guarani, na periferia paulistana. Mas era no centro que conseguia a melhor droga. “Na Cracolândia havia mais variedade e pureza e era muito fácil ganhar dinheiro.” Reconhece que tinha medo de andar por lá, porque era um lugar muito violento onde “você entra, mas não sai”. Seu rosto e sua voz mudam ao ver as fotos dos predinhos coloridos onde às vezes entrava. “A troca era de sexo por crack.” Surpreende-se com as coisas que chegou a fazer para conseguir um pouco da droga. Um dos principais negócios dentro das miseráveis pensões era a prostituição. “Principalmente de menores”, diz. Apesar da crueldade do lugar, conta que nem tudo era horrível. “Tinha pessoas, com suas histórias, e que não só roubam. Muitos pagam sua doses fazendo trabalhos na rua, como reciclar lixo.”

Essas pensões fecharam. Suas portas e janelas agora estão muradas com blocos de concreto, e as históricas fachadas foram grafitadas com símbolos do PCC, como yin-yangs, palhaços e carpas. Os números 1533 aparecem escritos por toda parte: é a posição no alfabeto das letras de sua sigla. Por cima dos sobrados que permanecem de pé se ergue um implacável guindaste. Levanta um enorme prédio de apartamentos subsidiados através de uma aliança público-privada. Na rua, os operários da obra vão e vêm enquanto os garis recolhem o lixo dos sacos rasgados por quem procurou algo. Uma moça descalça e com roupa grudada ao corpo inspeciona o chão. Agarra um pedaço de entulho e o joga com força contra uma janela murada. Várias vezes. A poucos metros dali, um cobertor desaparece pelo buraco já aberto em outra janela cegada.

Permanecer na rua

O primeiro que se nota ao cruzar a fachada de uma das antigas pensões da Cracolândia é o som de água corrente. No chão, canos quebrados regam o lixo e as roupas amassadas que levam ao labirinto de cômodos. Escadas com corrimãos de madeira, um retrato da virgem Maria e muitas moscas. Paredes abertas a marretadas seguindo o encanamento que não está mais lá. Portas com desenhos a lápis de palhaços e carpas. Beijos de batom. Telhados que deixam entrever o céu. Faltam as colunas que sustentam paredes, e parece que vão desmoronar a qualquer momento. “Até a estrutura eles arrancam para vender o metal”, diz um dos agentes da Guarda Civil que ilumina os sombrios quartos com uma lanterna. Ao fundo, após vários lances de escadas e uma sucessão de espaços sujos e queimados, há um homem de barba branca e 57 anos. Numa mão o cobertor; na outra, um pedaço de pão.

Vista de um pequeno grupo na rua.
Vista de um pequeno grupo na rua. Paula López

Cícero fala educadamente. Conta que chegou a São Paulo do longínquo estado de Alagoas antes de ler sobre a morte de Elvis. Era casado com uma mulher a quem chegou a amar mais do que à sua mãe. Há dez anos, quando soube que ela o havia traído, não suportou. “Deixei de me interessar pela vida, por trabalhar e ter responsabilidades.” Não conhecia o crack, até que experimentou essa forma de escape. “Se eu parar, me lembro da vida de antes e não aguento.” É a única coisa que usa para esquecer, e, quando consegue, caminha e dorme onde calhar. “Sabe qual é o segredo para morar na rua? Nunca se misturar com os outros.” Vive sozinho e não quer ninguém. “Nem para me acompanhar para comprar pão.” Deixa o prédio com os olhos chorosos e o pão seco entre os dedos, seguindo as indicações dos guardas. Penetrou por um dos pequenos buracos abertos para esquecer de tudo em um lugar tranquilo e seguro. Cícero é uma das centenas de pessoas que por enquanto não encontram seu lugar nos programas oficiais.

“Eles só servem para 20%, e isso não pode ser uma política pública.” Flavio Falcone é psiquiatra e palhaço. Trabalha há dez anos na Cracolândia com o nariz vermelho posto. “Não encontrei nada que estabeleça um vínculo tão potente com essas pessoas”, afirma. Tirou 40 da rua em dois anos com seu projeto Teto, Trampo e Tratamento. Segue a conhecida estratégia housing first (primeiro moradia), como o extinto programa De Braços Abertos do governo progressista de Fernando Haddad (PT), no qual trabalhou. “O que o Estado oferece agora condiciona a casa ao tratamento. O acesso à moradia é inclusive uma ação de saúde, porque eles tomam banho todos os dias e dormem bem, algo importante para seu bem-estar físico e mental.” Vestido com uma camiseta com os dizeres “direito à loucura”, o médico-palhaço de 42 anos, morador da rua Helvetia, se queixa de que o modelo atual de São Paulo ponha a segurança pública em primeiro lugar. “Querem expulsar estas pessoas daqui e mandá-las para a periferia. Esse é o objetivo por trás do discurso de combate às drogas.” O plano urbano de “revitalizar” a área existe desde os primórdios da Cracolândia. “O fluxo serve para desvalorizar os quarteirões nos quais eles estão de olho”, pensa Falcone. Revitalizar lhe parece uma expressão péssima. “Significa colocar vida, como se as pessoas negras e pobres que moravam aqui não estivessem vivas. É um projeto urbano higienista e racista.” A maioria de seus vizinhos discorda e gostaria que os usuários desaparecessem de algum jeito da porta das suas casas.

Os muros invisíveis

“As vidas da Cracolândia importam”, gritam ao fundo. É domingo à tarde, e hoje se pode caminhar sobre o Minhocão, fechado para os veículos. Falcone participa da manifestação contra abusos policiais na Cracolândia que vai a caminho da delegacia que fica atrás da rua Helvetia. Ao atravessar o fluxo, alguns se somam à passeata. “Delegado, torturador, a solução é o cuidado e não a dor”, bradam em coro diante do 77.o distrito policial. Entre os manifestantes há um rosto conhecido: Eduardo Suplicy, vereador pelo PT e eleito deputado estadual nas eleições de outubro com a maior votação do estado de São Paulo. Economista e político há mais de 50 anos, aos 81 ele ainda não perdeu a vontade de lutar pelos mais necessitados. “Formamos um grupo de trabalho através das comissões de direitos humanos para estudar o que está acontecendo exatamente com os usuários de drogas e evitar que se exerça tamanha violência contra eles como nos últimos anos.” A dispersão atual não lhe parece uma boa estratégia. “Deveria ter mais profundidade. Sei que não é um assunto fácil porque são muitas as razões que levam alguém a consumir crack e outras substâncias.” Como senador, Suplicy foi o autor do projeto de lei que institui a renda básica de cidadania, e isso lhe parece uma das vias mais eficazes para evitar que tantas pessoas acabem na rua. “Um dia ela será universal e incondicional, e espero ver isso.” Argumenta que a violência contra os consumidores não vai resolver o problema, e sim o diálogo com eles, moradores e comerciantes da região. “Em vez de incitação ao ódio, queremos mais práticas de amor”.

Vista de l distrito a los alrededores de Cracolândia en São Paulo.
Vista de l distrito a los alrededores de Cracolândia en São Paulo. Paula López

Mas as opiniões estão tão divididas quanto o próprio Brasil. “Tem que pegar todos eles, colocá-los em um ônibus e trancá-los à força.” Para Ricardo, a solução está clara. Ele é taxista e percorre o centro diariamente. Os moradores também não aguentam mais. Alguns elogiam o trabalho policial nas redes sociais, repetindo “Caronte neles” e fazendo solicitações diretas ao delegado Roberto Monteiro. “Por favor, delegado, tire os usuários da minha rua.” Outros decidiram pendurar cartazes de “vende-se”. Os prédios da região se desvalorizam em meio às altas torres de apartamentos de luxo que crescem entre eles. Abaixo, nas ruas, os usuários de drogas se movem em grupo seguindo as indicações policiais ou vagam sozinhos pelo centro de São Paulo. Ali sonham e choram, porque, embora alguns os chamem de zumbis, continuam vivos.

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